Três meninas e uma sentença
Apesar dos seus 12 anos, o adulto que as
possui é somente ‘imoral e reprovável’?
uízes do Superior Tribunal de
Justiça absolveram do crime de estupro um homem que teve relações sexuais com
três meninas de 12 anos. O tribunal alegou que elas não eram “ingênuas,
inocentes, inconscientes a respeito de sexo”. As meninas se prostituíam, ergo, a
atitude do réu, “imoral e reprovável”, não configurava esse crime.
A nota do STJ,
defendendo- se da enxurrada de criticas suscitadas pela decisão, informa que o
tribunal permitiu ao acusado produzir provas — dada a absolvição, devem ter sido
consideradas convincentes — de que o ato sexual se deu com o consentimento do
que a nota chama de “suposta vítima”.
A sociedade
brasileira, estarrecida com a sentença, tem o dever de se perguntar que valores
informaram essa interpretação jurídica e o direito de julgá-la severamente.
Crianças de 12 anos que, abandonadas por quem lhes deveria acolher e educar,
família e estado, entregues à violência das ruas, se prostituem são objeto de um
desprezo ancestral que dois mil anos de compaixão cristã não conseguiram apagar.
Ainda há quem atire a primeira pedra.
Quando uma
decisão ofende a sociedade, a pedra, como um bumerangue, volta. O Alto
Comissariado da ONU para os Direitos Humanos e as instâncias que, no Executivo e
no Legislativo, protegem esses direitos, deploraram a decisão. A opinião publica
condenou os juízes por insensibilidade.
Não lhes
comoveu o destino dessas crianças, órfãs de tudo, que até hoje, por descaso, o
Brasil não conseguiu perfilhar. E, no entanto, elas nos são bem conhecidas,
desde as páginas de Jorge Amado. Contra elas nada é crime. Despojadas de
direitos, vegetam nas esquinas e praças das grandes cidades como restos humanos,
tratadas como malditas, pequenas Genis, “boas de apanhar, boas de cuspir”.
Há pouco tempo, no estado do Pará, uma menor infratora foi jogada por ordem de uma delegada de polícia na cela de detentos que a estupraram. Quem se lembra? Alguém foi condenado?
Há pouco tempo, no estado do Pará, uma menor infratora foi jogada por ordem de uma delegada de polícia na cela de detentos que a estupraram. Quem se lembra? Alguém foi condenado?
O tribunal
achou relevante salientar que a “educação sexual das jovens certamente não é
igual, haja vista as diferenças sociais e culturais”. Que sentido tem, nesse
contexto, estabelecer essa diferença? Afirmar que elas não eram ingênuas? As
diferenças sociais e culturais que lhes tiraram a “inocência” e a “ingenuidade”,
requeridas pela juíza relatora para enquadrá-las na figura da vítima, são, por
acaso, culpa delas?
Por que se
prostituem — e o que quer dizer isso quando se trata de crianças — não existe
violência contra elas? Apesar dos seus 12 anos, o adulto que as possui é somente
“imoral e reprovável”?
Quem, em sã consciência, chamaria de consentimento o ato de se prostituir na infância? Teriam as meninas consentido do alto de seu bom-senso e maturidade, amplo domínio de suas emoções e destinos?
Quem, em sã consciência, chamaria de consentimento o ato de se prostituir na infância? Teriam as meninas consentido do alto de seu bom-senso e maturidade, amplo domínio de suas emoções e destinos?
Em nenhuma
hipótese, a relação sexual de um adulto com meninas de 12 anos deixa de ser uma
violência.
Qualquer
pessoa que vê meninas se prostituindo procura uma autoridade que as tire da rua
e se ocupe delas ou, pelo menos, indignado, lamenta a sua sorte. Não vai se
deitar com elas. Se o faz, aproveita-se não da ingenuidade, exigida pelo
tribunal para condenar o acusado, mas da vulnerabilidade, de que fala o Código
Penal, ao capitular como estupro de vulnerável a relação com menor de 14
anos.
A nota do
tribunal avisa que “nada impede que, no futuro, o STJ volte a interpretar a
norma e decida de modo diverso”. Enquanto os juízes, de tempos em tempos, vão
mudando as interpretações da norma, que mulheres irão se tornando essas meninas
que, já na infância, marcadas com o estigma da prostituição, perdem todos os
seus direitos? Quando alguém for enfim considerado culpado por juízes mais bem
afinados com seu tempo e com o mérito do que julgam, quem lhes devolverá a
justiça que lhes foi negada?
Quando o
ministro da Justiça, ainda que declarando-se contrário à decisão do tribunal,
diz que ela tem que ser “respeitada”, pede muito de nós, escolhe mal a palavra.
Melhor seria dizer “cumprida”. Decisões desse tipo, que vão contra o bom-senso
mais elementar, provocam inconformidade e indignação por parte de uma sociedade
cada vez mais alerta na defesa de direitos. O que é legítimo e auspicioso.
O repúdio
nacional e internacional que a decisão colheu deveria ter dado aos juízes a
medida do seu equívoco. Mas não. Investindo-se no papel de Tribunal da
Cidadania, repeliram as críticas, que definiram como levianas. Enganam-se mais
uma vez. No verdadeiro tribunal da cidadania, os juízes somos todos nós. E, aí,
a condenação é certa e sem apelação.
O
Globo, de 14 de abril de 2012
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